quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A LITERATURA DE SALOMÃO LARÊDO ANALISADA PELA PROFESSORA RITA DE CÁSSIA

Profª Rita de Cássia e Salomão Larêdo

"...Larêdo, de sua parte, se adianta e se modifica conforme as transformações das práticas de leitura, sobretudo diante dos desafios colocados nesses tempos de textos eletrônicos e de uma eventual “crise” da leitura". Disse a professora Rita de Cássia Silva, no encontro entre docentes e discente do curso de letras na disciplina Literatura Amazônica, da criativa mestra Bel Fares. Rita de Cássia, sempre sagaz e atenta leitora, com argúcia, levantou a questão da linguagem em minhas obras. 

Salomão Larêdo: Um escritor e suas mil faces 
(Rita de Cássia da Silva - Graduada em Letras, Especialista em Língua Portuguesa e Abordagem Textual e professora na rede pública)


“Jamais ter vergonha de ser feliz e inventivo” convida-nos Salomão Larêdo, na orelha do livro Jiboia Branca via Tapanã/ Tenoné sentido Águas Lindas/ Ver-o-Peso”, um livro proposto ao leitor como “Enlinhamento dos ônibus de Belém, um texto (poema) instalação”.


Situar a linguagem nesse patamar da novidade, da inventividade, propondo-lhe mais cor e sabor, enfatizando os saberes da Cultura do Pará, faz parte da produção literária de Salomão. Acima de tudo um escritor que se propõe “experimentar para criar... porque tudo é provisório, é gambiarra, é apenas um meio, nada é eterno e a mutação é constante”, citação do mesmo livro.

Diante de tanta inventividade, deduzimos ainda não haver a “completa tradução” desse nosso Arqueólogo da Cultura Paraense, nesse mover e remover do solo cultural do Pará. Às descobertas trazidas à luz a custo da perene pesquisa empreendida por Larêdo, substrato de sua obra, soma-se esse quase midiático jeito de lidar com a linguagem. No final das contas, o que vale mesmo é propor ao leitor o dinamismo do ato de ler; tirá-lo da indiferença; “seduzi-lo” pela leitura; facilitar a satisfação do encontro entre leitor e obra. 


Assim, da extensa obra de Salomão Larêdo a diversidade textual é uma das inúmeras marcas, nascida da dinâmica mesma de cada livro. Sempre de uma forma crítica nos convidando à leitura sob uma nova perspectiva de olhar e ver o mundo.

Na obra anteriormente citada (edição 2003), percebe-se que a proposição dos itinerários e linhas de ônibus explora o aspecto lúdico e poético que sobressai das denominações: “Linha: Utinga - Pça. Pedro Teixeira”, Linha: Pedreira-Condor”, “Linha: Npi-Ver-o-Peso”... E a dinâmica do livro se engendra entre poemas, microcontos, fotos, notícias de jornal e marcas de deliciosa oralidade, nosso falar paraense.

Essa maneira de trabalhar a linguagem faz lembrar as considerações de Roger Chartier, quando trata das características que remetem ao universo da leitura no espaço virtual: diversidade de textos num mesmo suporte (a tela do computador), onde não mais se distingue os diferentes gêneros ou repertórios textuais, semelhantes em aparência e equivalentes em autoridade. Não há, portanto, nesse contexto, a necessidade de distinguir, classificar e hierarquizar os discursos.

No livro “Marcas d’Água” (1998), o leitor tem contato com os “aerotextos”; em tempos de aeróbica (ritmo e rapidez) nada mais oportuno para conferir agilidade à leitura. Ao leitor são oferecido textos em prosa, bem como poemas, lacunas a preencher, questões de múltiplas escolhas e ainda textos provenientes de jornal e de revista, cuja linguagem referencial vem compor o painel de diversidade textual. 


Todo esse universo intertextual se complementa harmônica e pluralmente com a intenção explícita de cativar o leitor; com a consciência da missão dessa formação do leitor; nesse mesmo espaço o autor revela “Com educação/ mudaremos o mundo,/ desviaremos o rio e as/ águas passarão”.

Diante do exposto, apreende-se certa originalidade na obra de Larêdo, advinda dessa dinamização do suporte (livro) mediante a diversidade textual. Como vimos tal diversidade confere consequente impulso positivo no incentivo à prática de leitura, já que confere dinamismo ao ato de ler.

Os aerotextos prevalecerão ainda em Trapiche (2003), dessa vez livro bem mais extenso contendo causos, curiosidades, peculiaridades culturais, costumes e lembranças de lugares e pessoas que povoaram a infância- vida desse nosso escritor cametaense, de Vila do Carmo, Pará. O leitor pode empreender sua leitura entre prosa, algum poema e aerotextos (microcontos). “Gosto de Reaproveitar as coisas, reciclá-las e reciclar-me para não ficar desatualizado”, conforme esse trecho citado da referida obra. Pensamos demonstrar, novamente, essa busca consciente do autor pela interação com o leitor também por meio da diversidade de seus textos. 


No livro Antônia Cudefacho - ardente amor de um padre, a proposta é ser uma “encíclica cametaense - situação estritamente confidencial, romance transubstanciação”. Uma narrativa, baseada em fatos reais; de uma prostituta socialmente engajada e seu romance com o padre do lugar. Com curtos capítulos e entrecortado de, no comentário de Alfredo Oliveira, “verdadeiro dialeto falado na beira do Tocantins”; dialeto que sugere a resistência contra o colonizador português, se considerarmos nossa origem cultural. 

O texto se apresenta como encíclica, carta ou documento pontifício, dogmático ou doutrinário, dirigido ao clero católico, diz o dicionário. Na própria obra, porém, o autor revela que “esta encíclica social não envolve nada na área jurídica, canônica e nem teológica, não é dogmática, nem pastoral” (utilizada apenas como gênero literário, portanto). Escrita em língua brasileira, escrita em estilo crucial não exigindo arte nenhuma para ser lida (diferente das escritas em latim); pontifícia porque é “das gentes das pontes” e “estivista”, portanto, da estiva mesmo”, reiterando a linguagem , por vezes, satírica do próprio escritor.


Quanto a ser um romance transubstanciação (transubstanciar, transformar uma substância em outra) podemos ver, pelo menos, dois aspectos. Da entrevista, na qual iniciara o autor seu processo criativo, até a escritura do romance propriamente dito, tantas informações, sobretudo de aspectos sociais e culturais, foram sustentando, embasando o universo narrativo. Ainda poderia ser observado o fato dele ter partido de uma personagem, já inserida no imaginário popular, que passa à personagem de um romance no qual é lhe conferido, acrescentado, todo um conjunto de informações, permitindo conhecer e entender o contexto em que transitava, a Cametá de outrora, sua gente, sua fala, suas tradições e costumes: “ Antônia entrava para a história. Encantada, virou lenda, virou mito”.

Em tempos de interatividade entre textos, proposto pela leitura virtual, o livro em questão dialoga com outro livro que mostra os bastidores desse romance transubstanciação. O livro é “Antônia Carvalho por Maria das Mercês (entrevista)”. Trata-se da entrevista inicial à filha de Antonia (personagem do primeiro livro) objetivando levantamento de informação para escrever o romance anteriormente citado. 


Da entrevista inicial ao romance propriamente dito percebe-se o apurado tratamento de inventividade que fica a cargo do escritor. Informações, sobretudo culturais, tecidas por meio do dialeto das gentes tocantinas: a procissão de São Benedito; os blocos carnavalescos ou fofós; a tradição junina dos banhos cheirosos; histórias de Matinta, “que mundiava os homens e os carregava para onde queria”; os remédios caseiros; orações para mau- olhado; simpatias.

Ainda sustentam a narrativa as considerações e situações voltadas para aspectos sociais, contraste entre desenvolvimento e subdesenvolvimento dos espaços da narrativa; além de aspectos incorporados também pela personagem Antônia cujo “prazer era ajudar o próximo”: as benemerências, as campanhas políticas, os questionamentos sobre a pobreza de seu povo.

A estratégia visualizada pelo autor (“making off” do romance) faz lembrar um recurso utilizado, a priori, pelo cinema mostrando os bastidores de suas produções. Além de entrevista documental o, digamos, livrinho- anexo ainda traz fotos ilustrativas e documentais. Na entrevista a filha de Antônia relata sobre a mãe “Mulher solteira popular, benquista, amiga boa, generosa. Seu enterro foi um acontecimento em Cametá. Era muita gente e gente em toda parte, uma multidão”. 


Essa versatilidade da linguagem na obra do Larêdo escritor, que agora é analisada, torna-se possível pelo fato de o próprio autor ser também editor de seus livros. Pensamos que essa duplicidade de tarefas proporciona maior liberdade ao escritor e seu processo criativo.

Salomão Larêdo, conscientemente, segue os preceitos preditos dessa vez por Rolan Barthes sobre a posição da leitura e construção de significação do texto como espaço com sentido plural, móbil, instável.

Larêdo, de sua parte, se adianta e se modifica conforme as transformações das práticas de leitura, sobretudo diante dos desafios colocados nesses tempos de textos eletrônicos e de uma eventual “crise” da leitura. Essa sensibilidade e percepção dos anseios do leitor provêm das inúmeras palestras já realizadas pelo escritor - editor com o intuito de divulgação da leitura e formação do leitor.

Certamente, nesses encontros o escritor ouve, pressente as necessidades do leitor em interação com seus textos e, mediante posteriores leituras e reflexões, procede as adequações necessárias à efetiva sedução ou conquista do leitor de sua obra. 

Prof. Rita de Cássia e Salomão Larêdo

Assim, finalizo esse texto, que não tem a pretensão de esgotar o assunto, com um trecho de Marcas D’água que demonstra bem a posição de interatividade em que se coloca Salomão Larêdo diante desse seu expressivo legado literário: “escrito nas costas das águas, papel que nunca se acaba. Há sempre espaço e sua leitura é socializada, alcança a todos e vai sendo escrito e reescrito onde haja gente conversando à margem dos rios, contando as coisas, casos, fatos, fenômenos, enfim, as novidades e quando a maré reponta, voltam as notícias de outras paragens, acrescidas, novas, renovadas, completadas e assim se faz a comunicação das águas por águas” .

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