domingo, 31 de maio de 2009

OBRAS DE ARTE DA VILA DO CARMO

Salomão Larêdo escritor e jornalista

Recordo do tio João Cacau¹, famoso “cacuero”,apelido caseiro que seus netos , os meus primos, chamavam ,lá na Vila do Carmo, para seu avó, esse artesão que eu admirava ao vê-lo tecer abanos, fazer matapis, paneiros e outras obras de sua inventiva criatividade, usando o material disponível logo ali, no mato, há uns metros de sua casa, na rua do detrás em nosso lugar de nascimento,a tão querida e inesquecível Vila do Carmo.
João Cacau descia pro terreiro e logo estava de volta. Chegava carregado de braços de miriti e dali retirava o material – a tala verde - para tecer paneiro de meio-alqueire, abano de todo tamanho, tupé.
Eu ficava parado lá na sala de sua modesta casa, olhando aquele homem baixinho, sotaque de caboclo cametauara descendente dos negros africanos com um cigarro porronca na boca e de vez em quando cuspindo, fazer sua arte, tecer seus objetos tão úteis em nossa comunidade de gente pobre do interior cametaense.
Ele trabalhava contando casos e eu ficava atento e feliz ao ver sair daquelas hábeis mãos, material que eu nunca soube fabricar e que tinham inúmeras serventias na comunidade: por farinha de mandioca, mapará salgado, carne de porco, juntar uxis e umaris, guardar folha de canela seca, pra servir de guarda-roupa, para prender serimbabo, transportar castanha, levar palma de pão , depositar limão,miriti, açaí, frasco e frascos de camarão, fazer boneco e quando não prestavam mais, serviam ainda para a fogueira de são Marçal, no dia 30 de junho que anunciava o final do mês junino e de que estava se aproximando a festa do Carmo, era a fogueira de paneiros velhos que o fogo consumia com rapidez, diferente das outras, feitas de sacai.

E outros modestos operários trabalhavam com esmerada rapidez o cabo de um machado para rachar lenha fazendo achas certinhas no amontoado junto ao fogão; para partir bicho de casco, derrubar árvore, o cabo devia ser feito de madeira boa, forte, nem leve, nem pesado e escalavrado com esmero para não espocar as mãos do lenhador, fosse novo ou velho, homem ou mulher.
Do mesmo, outros artistas da madeira enformavam mão de pilão, no geral, de madeira escura, forte e pesada para socar o arroz, pilar o cacau, o milho, a cruera, devia ser bem torneado,as cabeças, ambas as pontas, boleadas, ficar liso, pois, no geral, era para uso feminino, no terreiro.
Quanta habilidade para fazer remos de todo tipo e tamanho e pintá-los,abrindo paisagens de todo tipo com motivos ribeirinhos variados.Quanta arte ! Quanta paciência!
Calafetar e pintar canoas, abrir nomes, eram dons dos artesãos da Vila do Carmo, santeiros, encarnadores, também.
E muitos preservavam e repassavam a arte dos antigos de ser parteira, puxar barriga, ajeitar criança, fazer o parto, a arte de afomentar baques, ajeitar desmentiduras, tirar quebranto, benzeduras, fazer garrafadas, recomendar chás e outros matos e preparados para as afecções da pele e qualquer tipo de dor ou indisposição. Assim vi dona Fita, tia Rosa, tia Domingas, dona Juruti e muitas outras mulheres e até homens – seu Alves, Ovídio - , no ofício sábio do povo simples, sem nada cobrar de seu serviço à disposição de quem precisasse. Na botica, seu Pereira fazia as poções, recomendava a mamona para a verminose, prescrevia outros medicamentos.
Artesão especialista em pilão recebia muita encomenda pois toda casa tinha terreiro e precisava desse aparelho doméstico.
E vinham colher de pau, cabo de martelo, rodos para mexer farinha no forno com aquelas varas enormes, tamboretes, tinas e gente que serrava toras de madeira para que surgissem as tábuas dos assoalhos e das paredes para o tio Bembém e o Elias Marçal fazerem os serviços nas casas.
Seu Tonga forjava no fogo as espingardas e outros instrumentos que o fole não descansava .
Os carpinteiros navais: seu Chico Lira, seu filho Zinho Lira e seus irmãos fabricavam bonitos motores chamados marabaenses que singravam as águas de nosso espaço, rasgando cachoeiras onde hoje está a hidrelétrica de Tucuruí.
Na música, a família Satiro de Melo era peoara. Eles ensinavam, faziam partituras, inventavam melodias lindas, dobrados, sambas, inúmeras composições populares e eruditas. Surgiram muitas bandas musicais formadas pelo pessoal da vila que tocava instrumentos porque aprendia com a maestra Nazaré Satiro de Melo e suas irmãs que também dominavam essa expressão artística.
Dona Nazaré Satiro ensinava a fazer flores e outros enfeites domésticos que as moças queriam aprender. Cortavam com arte as peças de papel para colocar nas prateleiras. Ela ensinava também a arte cênica, a dança, o auto-pastoril. Sua casa era um centro cultural cheio de aprendizes, professores, artistas, músicos, visitantes e apreciadores da arte que ali fazia morada permanente movimentando a vida cultural da nossa Vila.
Bordados surgiam, crochê, cada peça mais linda que a outra virava guardanapo, tampa de pote, capa de bilha e balde, fronhas, lençóis, toalhas marcadas com as iniciais da família que encomendava.
Tia Dinoca tecia as grinaldas para o período de finados, mas sabia fazer vinhos e doces de tudo que é tipo – capilés, compotas, bom-bocado, doce de ginja, de cupu, bolo confeitado e ainda tocava harmônio na igreja. Diversas famílias produziam bolas de chocolate, torravam café, paçoca de gergelim, beiju, beijo de moça e outras deliciosas iguarias caseiras como calda de pirulito, mingau de cruera, arroz doce,sonhos, pão comum.
Muitas moças cantavam no coro da igreja e sabiam de cor as ladainhas.Outras sabiam enfeitar a igreja, ajeitar salão de festa e fazer as roupas para a comunidade, reunindo em seu ateliê os manequins à escolha da comunidade unida e feliz !
Os alfaiates fabricavam os fatos indicando o tipo de tecido, o corte, o modelo.
Minha avó materna fazia panelas, alguidares e outros objetos, de barro.
Volto ao tio João Cacau que produzia bonitas palmatórias a quem meu avó paterno chamava de maricota², com um buraco no centro, de cabo enfeitado com desenhos que Cacuero criava. Sempre que chegava à Vila do Carmo, ia pedir a ele para fazer uma palmatória.
Ele fazia e me dizia: olhe que o sinhô tá aprontando objeto pra apanhar com ela. No geral, acontecia de pegar uns bolos por alguma traquinagem que fazia junto com o meu irmão José e os meus primos.
Tio João Cacau também carpintava banco, mesas, mochos,usando quase nenhuma ferramenta, não havia na Vila do Carmo : goiva, goivete, verruma, enchó, plaina, eram objetos raros na Vila.
Percebi que ele gostava mesmo e fazia com rapidez e perfeição, peneira para açaí tuíra, parau, branco, bacaba; outra para a crueira, para a tapioca, de todo tipo e tamanho. E os tipitis, grandes para comportar a massa da mandioca. Peneirões para passar a massa da farinha de tapioca.
E havia quem fabricasse cachimbos.Outros artesãos fazia currupios, roda de carro de mão, roda de carro de boi, aquelas, imensas e que gritam no caminho, curimbós para o bangüê ou sambe de cacete.

Vivica organizava os blocos no carnaval, desenhava os figurinos, armava a gigantinha, compunha letra e música e ainda dava nome ao bloco: na volta eu digo.
Tio Felix sabia tudo de bangüê. Nicanor e Gilvan não se descuidavam dos cordões de boi e pássaros
Tiruti, ³por exemplo, fazia cadeiras chamadas de vime, aquelas de cipó timbuí que ele ia colher no mato. E também cortava cabelo.
Laurindo era exímio pescador e fazia as redes, zagaias, anzóis. Tinham aqueles peoaras em fazer tapagens, cacuris com talas maduras de miritizeiro. Uma tapagem é uma verdadeira instalação plástica de trabalho artístico com fim de assegurar a bóia do dia no enche e vaza das marés.
Bem[4], fabricava foguetes e assim surgiram diversas fábricas de foguetes na Vila do Carmo.
Havia quem tecia parede de miriti, parapeito, cortina. E os brinquedos de miriti, então, eram diversos e variadas lanchas, lanchões, barcos, todo tipo de embarcação. Havia quem fazia brinquedos de lata, lamparinas rifiris, bonecas de cachos de açaí, jangadas de mututis, peões, andor de santo e até eletrolas que funcionavam ao colocar disco de vinil.
Tudo eu observava sem saber fazer um boizinho de manga verde e de pés de palito de fósforo parta compor a fazenda imaginária de gado na brincadeira na frente de casa.
Tempos depois, compreendi que igual a esses artistas anônimos da Vila do Carmo, eu estava sendo preparado para tecer os textos que contam as histórias dos meus conterrâneos que faziam verdadeiras e importantes obras de arte do qual tanto me orgulho envaidecido.


¹ João Cacau ou Cacuero, era apelido de João de Almeida.
² As palmatórias ganhavam nomes ou apelidos. Numa comunidade do Moju, por exemplo, chamavam de Boca Rica. Quem gostava de apreciar no parapeito da escola a sabatina pra achar graça da cara feira da meninada com a tal da palmatória de nome Boca era Moçambique, preto velho retinto de prenome Filipe,negro africano que vivia lecionando à comunidade, disse-me a Célia.
³ Tiruti , apelido de João Medeiros.
[4]Bem é apelido de Benedito Carvalho.

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