quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Uma temporada no inferno (Arthur Rimbaud*)

por Filipe Larêdo

em 18/08/2013 

Como manifestação da estética comunicativa, a arte é capaz de estimular a consciência a partir da percepção, das emoções e das ideias, dando para cada obra um sentido único e inédito. Dessa forma, o teatro, o cinema, a literatura, a escultura etc. conseguiram, no decorrer de sua história, mudar de forma e estilo por diversas vezes, afastando o marasmo sempre que ele resolvia se impregnar na cultura da humanidade.

Porém, esse efeito, apesar de contínuo e constante, não é percebido com tanta frequência pelas pessoas, pois as escolas de arte, quando se formam, nem percebem que estão fazendo parte de uma geração modificadora. Essa sensação, dependendo do poder, pode ser mais ou menos sutil.


Mas, de todos os adjetivos que podemos escalar para Arthur Rimbaud, sutil é o menos apropriado.

Vindo de
Charleville, em Ardennes, departamento no nordeste da França, chegou de maneira avassaladora a Paris, revolucionando o que se chamava até então de poesia e afastando definitivamente a chatice parnasiana que infestava a literatura vivida naquele momento, representada pela preciosismo das palavras, pelo culto absoluto à forma, pelas rimas ricas e pela falta de compromisso da arte com a realidade, fazendo com que a poesia fosse considerada completa por si mesma, sem se importar com o que o homem comum sentia.

Conhecido como o maior poeta rebelde de todos os tempos, ele modificou a literatura e a poesia. Tudo isso tendo escrito apenas até os dezenove anos. Dessa forma, é correto afirmar que Rimbaud é a própria personificação da juventude, pois seus poemas ao mesmo tempo que são os primeiros, também são os últimos.

Segundo os registros, Rimbaud teve, claramente, três fases bem distintas em sua vida.

A primeira seria os quinze anos que separavam o seu nascimento, em 20 de outubro de 1854, e a cerimônia de formatura no colégio, em 6 de agosto de 1870, período no qual o poeta teve uma fraca ligação com sua mãe, que era vista como uma mulher de pouca inteligência e de orgulho exacerbado, que costumava tratar o filho com constante severidade e censura. O segundo começa logo após a formatura e vai até o dia 10 de julho de 1873, data em que seu amante, Paul Verlaine, o feriu com tiros.

Foi durante esse período que a produção textual de Rimbaud foi alcançou seu ápice e ele, realmente, pôde viver como poeta. A terceira e última fase é a mais misteriosa de todas: logo depois de escrever sua obra prima, Uma temporada no inferno, e alcançado um status de estrela da literatura francesa, ele desistiu da carreira e partiu, tornando-se andarilho, aventureiro e mercador, até a data de sua morte, em 10 de novembro de 1891, aos 37 anos.

Esse apanhado geral que fiz da vida de Rimbaud é muito importante para que se entenda a força revolucionária de um poeta tão jovem. Ela é tão extrema que, se voltarmos ao parágrafo anterior, veremos a influência que ele exerceu em
Paul Verlaine, um famoso poeta francês, vários anos mais velho que Rimbaud, fazendo-o ficar deveras desesperado quando em proximidade da jovem e imponente figura, chegando ao cúmulo de tentar matá-lo.

E depois de causar o maior rebuliço da história de Paris, o iconoclasta Rimbaud resolveu desaparecer, como se nada tivesse acontecido. Dá pra entender?

Para dar aos caríssimos leitores uma mostra visual da importância de Rimbaud no epicentro intelectual de Paris, cito Le Coin de table, uma pintura de Henri Fantin-Latour na qual, em 1872, o jovem poeta está cercado de jornalistas, pintores e escritores da época, incluindo o desesperado Paul Verlaine.


Outro desenho, porém não tão formal como o anterior, é o retrato que Pablo Picasso fez do “punk” Rimbaud em 1960, no qual o poeta aparece com os cabelos espetados típicos dos jovens rebeldes.

Tendo a rebeldia da juventude guardada em seu interior e a revolta contra a hipocrisia enraizada na figura da mãe, Arthur aprendeu a destilar inteligentemente o ódio e o consubstanciou em inúmeros versos “impuros”, tornando-se o maior entre os chamados “poetas malditos”. E nenhum título poderia ser melhor escolhido para um artista com tão destruidora alcunha do que Uma temporada no inferno, o clássico-mor da poesia simbolista.

Tudo começou numa pequena aldeia nas Ardenas, em abril de 1873. Morando com a família na casa em péssimo estado, herdada pelo avô, Arthur havia acabado de chegar de Londres e estava entupido pelo consumo excessivo de tabaco, álcool e haxixe, o que o deixava irritadiço, febril e, por vezes, alucinante. E foi com esse cenário que ele decidiu escrever seu derradeiro livro, o qual, para muitos, é tido como uma verdadeira autobiografia metafísica, onde frases e símbolos descrevem uma batalha entre um homem e o mal.

“Outrora, se bem me lembro, minha vida era um festim onde se abriam todos os corações, onde todos os vinhos corriam.
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. – E achei-a amarga – E injurei-a.”

Trecho inicial de Uma temporada no inferno.

Com essas palavras, Rimbaud mostra a que veio. A revolta contra tudo que é ordinário será a tônica de seus poemas, destruindo a Beleza, representação primeira da estética parnasiana. Entretanto, se a carga destrutiva parasse por aí, ele poderia ser descrito nos livros de crítica literária do futuro apenas como um poeta hábil e ambicioso.

Só que ele não parou; e partiu para uma jornada que questionava o mundo convencional, indo em direção ao mundo sombrio dentro de si.

Mostrando o terreno no qual irá lutar, ele revela sua própria história de vida, dizendo ter em suas veias o “Sangue ruim” dos antepassados gauleses, repleto de fraquezas físicas, espirituais e mentais e que vai determinar o conteúdo dramático de sua vida. Porém, são dois os tipos de passado que incomodam o poeta: o gaulês e os valores burgueses vindos de pai para filho, nos quais a herança é transmitida como regra.

A partir dessa origem, ele destrincha seus delírios como um profeta, cuja visão mística desnuda a razão e a ordem que governam a sociedade essencialmente católica, ao mesmo tempo que mostra a total desesperança de alcançar a felicidade senão por meio do sacrifício e da aridez. No decorrer dessa temporada no inferno, o poeta experimenta o caminho do excesso, mas, no fim, é trazido de volta para a condição primitiva do camponês. E é nessa fé perdida que se encontra a luta moral de Rimbaud.


Já é outono! — Mas porque deplorar um sol eterno, se estamos empenhados na descoberta da claridade divina, — longe das gentes que morrem ao correr das estações.

O outono. Nossa barca erguida nas brumas imóveis ruma ao porto da miséria, a cidade enorme sob o céu manchado de fogo e barro. Ah! os andrajos podres, o pão ensopado na chuva, a embriaguez, os mil amores que me crucificaram! Nunca deixará de existir essa vampiro rainha de milhões de almas e corpos mortos e que serão julgados! Revejo-me, apele roída pela lama e peste, os cabelos e as axilas cheios de vermes, e vermes ainda maiores no coração, estendido entre os desconhecidos sem idade, sem sentimento…Eu poderia assim morrer…Horrorosa evocação! Execro a miséria.

E temo o inverno porque é a estação do conforto!

— Vejo às vezes no céu praias infinitas cobertas de brancas nações em festa. Uma grande nau de ouro, acima de mim, agita seus pavilhões multicolores sob as brisas da manha. Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Acreditei adquirir poderes sobrenaturais. Muito bem! Devo sepultar minha imaginação e minhas lembranças. Uma linda glória de artista e de narrador perdida!

Eu! Eu que me chamei mago ou anjo, dispensado de toda moral, voltei ao chão, com um dever a buscar, e obrigado a áspera realidade abraçar! Campônio!

Engano-me? seria a caridade, para mim, irmã da morte?

Enfim, pedirei perdão por ter-me nutrido de mentira? E sigamos.

Mas nenhuma mão amiga! e onde encontrar o socorro?

Sim, a nova hora é pelo menos muito severa.

Pois posso dizer que a vitória me foi dada: o ranger de dentes, o sibilar do fogo, os suspiros pestilentos se atenuam. Todas as lembranças imundas se apagam. Minhas últimas queixas se esfumam, — inveja dos mendigos, dos salteadores, dos amigos da morte, dos párias de toda espécie. — Malditos, se eu me vingasse!

É necessário ser absolutamente moderno.

Nada de cânticos: manter o terreno conquistado. Dura noite! O sangue ressequido fumega em meu rosto, e nada tenho atrás de mim a não ser este horrível arbusto!…O combate espiritual é tão brutal quanto a batalha dos homens; mas a visão da justiça é o prazer só de Deus.

É a vigília, entretanto. Recebamos todos os influxos de real vigor e ternura. E, ao romper da aurora, armados de ardente paciência, entraremos nas cidades esplêndidas.

Que falava eu de mão amiga? É uma bela vantagem poder rir-me dos velhos amores ilusórios, e cobrir de vergonhas esses casais mentirosos — vi o inferno das mulheres lá em baixo; — e me será permitido possuir a verdade em uma alma e um corpo.

De Uma temporada no inferno, 1873; tradução Janer Cristaldo

*
Jean-Nicholas Arthur Rimbaud (1854 – 1891) foi um poeta francês de carreira meteórica. Produziu a maior parte de suas obras antes de completar os vinte anos e foi apontado por Victor Hugo como “um jovem Shakespeare”. Após alcançar o sucesso, desistiu de escrever e partiu para loucas aventuras no interior da África, onde contraiu uma infecção, o que o levou de volta para morrer na França.
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Filipe Larêdo

Filipe Larêdo é um amante dos livros e aprendeu a editá-los. Atualmente trabalha na Editora Empíreo, um caminho que decidiu seguir na busca de publicar livros apaixonantes. É formado em Direito e em Produção Editorial.

Outros artigos escritos por Filipe Larêdo no site: http://papodehomem.com.br/uma-temporada-no-inferno-arthur-rimbaud-livros-pra-macho-18/


















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