domingo, 17 de fevereiro de 2013

A IDADE DA RAZÃO (L’âge de raison)

por Filipe Larêdo

Em 03/02/2013 às 0:00 | Cultura e arte, Resenhas 

Aprendi a gostar de leitura desde muito pequeno. Meu pai, um contador de história habilidosíssimo, sabia – e ainda sabe – muito bem estimular a vontade de ler nas pessoas.
Conto sempre para os amigos mais próximos (e revelo para os fiéis leitores dessa coluna) que li a versão original de O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha mesmo sem saber ler. Calma, eu explico. Todas as noites, antes de dormir, meu pai lia cerca de dez páginas do calhamaço e, aos poucos, fomos terminando juntos a agradável leitura.


Espera só a reviravolta

Como forma de avaliação, ele apenas perguntava sobre o que havia ocorrido na noite anterior. Se eu não soubesse responder, ele não leria mais. E foi assim que a minha mente registrou o primeiro contato com literatura.
O leitor deve estar se perguntando “por que raios esse cara está falando do pai e do Dom Quixote, se o texto vai falar de um livro do Sartre?”.
Eu respondo.
Dizem os especialistas que uma boa história deve começar com uma ótima introdução. E foi essa a maneira que encontrei pra falar sobre uma edição publicada em 1971 de A idade da razão que pertence ao meu querido pai, a qual me foi emprestada quando tinha 18 anos.
Lançada pela Abril Cultural, a obra fazia parte de uma coleção de capa dura e vermelha chamada “Os imortais da literatura universal”, bastante conhecida pelos leitores mais velhos e pelos frequentadores de sebos. E é sobre ela que o texto de hoje tratará.
A idade da razão é considerada a primeira parte da trilogia “Os caminhos da liberdade”, mas não se preocupem, naquela época, os autores não escreviam livros que dependessem de continuações para fazer sentido, embora alguns já manifestassem esse objetivo.
Então, a leitura pode ser feita sem a obrigação de continuar em outras obras.


O livro apresenta ao público alguns dias na vida de Mathieu Delarue, um professor de filosofia em Paris que recebe a notícia de que sua namorada não assumida está grávida. Como ele não quer ser pai, passa a rodar pela cidade procurando uma solução, enquanto outros personagens vão entrando na história.
O que torna A idade da razão um livro de macho? Pensei bastante comigo mesmo e cheguei à conclusão que, como homens, somos responsáveis por nossos atos e, principalmente, por nossas liberdades.

Edicão com a capa ilustrada pela “Guernica” do Picasso. Não é qualquer livro, Mathieu entendia isso. Era intelectual e professor de filosofia. Mesmo assim, manteve uma relação não-oficial. Até aí tudo bem, afinal de contas, muitos casais conseguem se manter unidos das maneiras menos tradicionais possíveis. Porém, ela não percebia a situação tão bem assim. Queria ter Mathieu como seu companheiro, e esse desejo piorou quando soube que estava grávida. Ciente da notícia, ele tomou uma decisão: a gravidez deveria ser interrompida.
Não estou aqui para defender ou atacar o aborto. Essa é uma decisão particular de cada um e deve ser analisada com bastante cuidado, já que é a vida de uma pessoa que está em jogo. Porém, Mathieu, defensor das liberdades filosóficas do sujeito, acredita que não está preparado para ser pai e vai adiando o seu momento de “ser racional”.
Ele poderia ter sido racional antes de ter um relacionamento de estrita satisfação sexual e, até mesmo, antes de engravidar sua parceira, afinal de contas, um sujeito conscientemente livre, é detentor de grande poder e, por isso, tem uma responsabilidade diante de seus semelhantes. Mas não é isso que ele faz. Pelo contrário, pede dinheiro emprestado para os amigos, mas quando encontra dois alunos seus, aceita se embebedar em um caro estabelecimento.
Ah, esqueci de mencionar. Um dos alunos, na verdade é uma aluna. Ela é muito bonita e, adivinhem… Mathieu não vê a hora de levá-la para a cama.
Como homem, vejo que, na maioria das vezes, a irresponsabilidade de manter relações sexuais sem o filtro da responsabilidade gera uma quantidade absurda de “filhos sem pai”, isso sem contar com doenças sexualmente transmissíveis. Ou seja, a falta de vínculo responsável com a própria liberdade vai produzindo uma continuidade descompromissada, que se materializa em dificuldades para diversas mães que precisam cuidar de seus filhos.
Talvez, se tivessem condições, optariam pelo aborto, mas e quando não têm? Os filhos nascem e terão que cuidar de sua própria formação, tanto física quanto educacional.
Para mim, Mathieu é o símbolo do intelectual que conhece todas as grandes teorias filosóficas já construídas pela humanidade, mas que não consegue aplicá-las na sua convivência com os mais próximos. No fundo, permanece preso por uma pseudoliberdade que o aprisiona na ilusão e que o faz embargar a chegada da sua idade da razão.

Sartre em seu ápice estiloso
Jean-Paul Sartre foi um filósofo e escritor francês. Ficou conhecido por construir as bases do existencialismo. Em 1964, se recusou a receber o Prêmio Nobel de Literatura por acreditar que, com essa distinção social, os leitores receberiam uma pressão externa não desejada.

Filipe Larêdo

Filipe Larêdo é um amante dos livros e aprendeu a editá-los. Atualmente coordena o catálogo estrangeiro da Editora Novo Século (São Paulo – SP). É formado em Direito e em Produção Editorial.


COMENTÁRIOS
  •  É um puta livro mesmo. Li há sete ou oito anos, então os contornos da leitura já estão um pouco falhados na minha cabeça, mas (como muita coisa do Sartre) é de fato um livraço. Aliás, o restante da trilogia também é.
- - - - -
Filipe, foda demais o seu relato de como seu pai lia com você. Meu pai fez isso umas poucas vezes comigo (mas não com Dom Quixote) e tenho lembranças muito legais. Me parece ser algo muito legal para se fazer com mais frequência com os filhos, e planejo um dia fazer isso com os meus. : )
Abraços.
  • Lays Machado Marcus Telles•2 dias atrás
Filipe, seu pai era incrível :)

  • Rafael de Mesquita•4 dias atrás
Olha só, tava hoje essa semana mesmo pensando que esse era um bom livro para esta coluna! 
Acho interessante a forma dele abordar a busca incessante pela liberdade absoluta, e o que significa afinal ter essa liberdade toda.
  • Filipe Larêdo Rafael de Mesquita•3 dias atrás
Legal, Rafael!
Se nós dois pensamos que esse seria um bom livro, então não há dúvida que a escolha foi certa. 
Abs.
  • Edson Maruyama Diniz•2 dias atrás
Post Foda. Tentei ler Sartre. Li A Náusea e foi muito difícil. Tentarei este em breve. 
No aguardo da crítica do 1984 - George Orwell e O Príncipe - Maquiavel, dois livros que eu leio, releio e recomendo. Fica a sugestão.
  • Neilson Pimentel•2 dias atrás
A minha geração enxergava em Sartre e seu existencialismo mais pela linha de ação revolucionária baseada na dialética marxista através do idealismo do ser antes de se preocupar com a sua essência. Foi num outro contexto que lemos essa obra. Acreditávamos que o que perturbava o Mathieu era a própria intencionalidade do ato que se sobrepunha a realidade que era a gravidez da mocinha. Lembre-se que Sartre com Simone de Beauvoir ainda representam a primeira relação afetiva "moderna" e aberta que buscamos até hoje. Um abraço do amigo e parabéns por trazer esse autor um pouco esquecido e nunca fora de moda
  • Hugo Marcelo Barbosa•17 horas atrás
Grande Larêdo, excelente comentário. Gostei muito da reflexão que vc propõem.
Um grande abraço,
Hugo Marcelo
  • Johnny•2 dias atrás
Sensacional o que teu pai fez contigo! Quisera eu ter tido sorte parecida, já que o gosto pela leitura deve vir, em parte, do exemplo que vem de cima. Espero poder fazer algo análogo.
Quanto ao livro, só li Le Mûr do Sartre, assim como outro comentarista mencionou, no entanto fica a dica de pegar esse e ler.
  • Welington Leal•2 dias atrás
Ainda não li Sartre, porem dos seus aforismo são bem familiares e aplica no dia a dia. Principalmente "O inferno são os outros".

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