Segue artigo completo publicado no jornal O Liberal:
O CONJUNTO DO IAPI EM SÃO BRÁS
Salomão Larêdo, escritor e jornalista
Inicio da década de 1960, garoto, vendia, na calçada, em frente ao Lar de Maria, café torrado e embalado em Belém, da marca Puro, na feira de são Brás, para ajudar meus pais. Tínhamos chegado da Vila do Carmo(Cametá) e as dificuldades eram inúmeras. Morávamos numa casa alugada, simples, humilde, coberta de palha de ubuçú, feita em cima do igapó na passagem Umaris, 258, no bairro da Cremação, onde, a noite, os muçuns e os carapanãs faziam a festa. Vinha e retornava a pé, toda manhã, cedo e via o terminal da EFB – Estrada de Ferro de Bragança, os trens, trilhos e o areal onde ficavam os ônibus da linha São Brás/Batista Campos,no chamado Largo de São Brás ( havia também o Largo de Nazaré, do Redondo e outros). Passei algumas vezes pelos blocos do IAPI, que foram erguidos em área onde possivelmente, quando Belém foi fundada, em 1616, viviam os Tupinambá, por ser terreno seco e alto ( por muitos chamado Alto do Bode) . Havia igarapés às proximidades.
A lembrança que tenho dessa área é restrita e faço este memento na esperança de que outros possam contribuir e por isso resolvi, recentemente, passar por lá e fotografei o que vi. O conjunto, em sua parte arquitetônica vem mudando a face e a estrutura física das casas que eram duas em cada terreno, uma em cima e outra embaixo, com quintal e para haver espaço entre grupo de quatro casas, há uma parede de cobongó que era a entrada das residências (habitação social) feitas, imagino, para moradia dos servidores das repartições de órgãos públicos federais, certamente vinculados ao IAPI- Instituto de Aposentadoria para os Industriários, imóvel recebido ou legado em doação ou amortização facilitada ou bonificada e que depois, legalmente transferida do governo federal a terceiros, vem sendo sucessivamente repassada, por via onerosa , a chamada transação imobiliária por venda registrada em cartório de imóveis. Talvez tenha sido o primeiro conjunto habitacional, de Belém,casas construídas em alvenaria e, naquele época, década de 1950, são Brás era periferia. Recordo que no bairro da Cremação, havia a Vila Operária, na rua São Miguel, depois demolida totalmente, que ficava perto do forno crematório.
Na década de 1950/1960, cada categoria, se não me equivoco, tinha seu instituto próprio. Recordo também do IAPM – Instituto de Aposentadoria para os Marítimos, cujo hospital funcionava na av. Alcindo Cacela ( 22 de Junho) esquina com a av. Gov. José Malcher ( São Jerônimo),onde hoje tem uma espécie de posto de saúde do estado. Havia o Iprec – Instituto de previdência do clero; o IAPB, do bancários e assim outros e outros. Era outro Brasil, outra configuração sócio-geo-politica-religiosa, cultural e estrutural do final dos pós-guerra e antes da ditadura militar, antes do chamado êxodo rural numa gostosa Belém de outrora, com tabernas ou mercearias, quase todas da portuguesada,nas esquinas, denominadas poeticamente de “Princesa do Encanto” e similares nos lares paraenses da Western, ao Guara-Suco; da TV Marajoara Canal 2, aos lotações.
Tomara haja no CREA- Conselho Regional de Engenharia Arquitetura e Urbanismo ou no Instituto ou Curso de Engenharia da UFPA ou em outros cursos ou setores afins, dissertações de mestrado ou teses de doutorado sobre os assuntos aqui abordados de modo superficial, emocional e afetivamente, para que a memória seja preservada, posta, recomposta e se tenha como pesquisar e saber de quem era a área – certamente doação municipal à expansão da Belém – quem elaborou a planta arquitetônica, o serviço de engenharia, quem construiu etc. Precisamos registrar e preservar a nossa memória, é urgente ouvir os moradores, obter fotos, salvar o que for possível.
Claro que o conjunto do IAPI faz parte da estrutura urbana moderna e contemporânea de Belém - veja a foto da Escola Municipal Benvinda de França Messias, construída como expressão de arquitetura moderna à aplicação e aos fins da educação e do ensino - e aqui é tomado como um exemplo da transformação e adaptação natural das coisas( um imóvel, a casa própria, direito que, infelizmente ainda poucos têm ) , mas, que serve de modelo à preservação da memória, neste caso, imobiliária e de como podemos derruir, interferir sem considerar aspectos ou deixar sinais, vestígios que podem, nesses palimpsestos de civilização, no futuro, contar, mostrar, explicar comportamentos da vida societária de determinada comunidade em período ou época que se queira examinar, comparar, analisar sob qualquer ângulo.
Certamente que devemos compreender a mutação da vivência/convivência do homem amazônico que passando pela floresta, igapó, ilhas, campos, chega à cidade atropelado pelo processo de aderência subjetiva na urbanização/conurbação/metrópole/megalópole/mobilidade e o insulamento que o conforto – a construção em tijolo, com água encanada, fossa biológica, energia elétrica etc - propicia acabando com a camaradagem e a socialização ou partilha dos bens com outros sujeitos culturais, conforto esse decorrente da economia de mercado que impõe conflito ,contrato e trato egoísta que o medo do outro, sério concorrente, afasta a convivência real e escancara o virtual na disputa ferrenha por espaço, emprego e sobrevivência, tendo no exemplo do mito da matintaperera, a escolha : tabaco ou coca-cola, pois até o açaí, que era comida de pobre, virou produto industrializado, pasteurizado, de exportação e por isso, caro, inacessível aos de baixa ou nenhuma renda.
Conversei com algumas moradoras, senhoras de idade que mostraram o que é evidente, ou seja, como as casas, de mais de três quartos e outros compartimentos, na parte de baixo, estavam modificadas, desfiguradas, descaracterizadas. Mas, são, pela localização, hoje, altamente valorizadas e cobiçadas. Mencionaram a insegurança e por isso, as grades proliferam. Não há, com a violência exacerbada e descontrolada, condição de manter a prosa na porta das casas, como antigamente, pois grande parte não é mais residência e serve a múltiplas atividades de negócios, a vizinhança não se conhece mais, há pontos de ônibus, taxi, barulho de buzinas de toda espécie, poluição de todo tipo e total e felizmente, naquele entorno, há uma três ou quatro bancas de livro usado, que chamo de “ sebo”, uma área denominada de Praça da Leitura e um espaço que é um ex-museu, que o pessoal chama de “Chapéu do Barata”, onde moradores de rua se concentram. Há muitos pedintes.
E, há malandros à espreita, observando o movimento nas ruas do conjunto onde quase todos a quem perguntamos, à exceção de Carlos, dono de uma banca “sebo” , não lembram ou recordam de que passava e passeava quase anônimo, naquelas vias daquele conjunto, o poeta Max Martins, morador de uma das casas do conjunto, falecido há alguns anos e por quem fiz questão de saber e só o Carlos, repito, da banca “ sebo, falou que recordava do escritor e lamentava a pouca leitura da sociedade que esquece seus autores e não preserva a memória. As fotos, todas, que ilustram esta matéria originariamente publicada via internet no facebook e no blog( slaredo.blogspot.com), foram feitas por mim, no celular.
P. S. - Sugiro à Casa da Linguagem, da Fundação Cultural do Pará, onde Max Martins trabalhou, dirigindo, junto com Maria Lúcia Medeiros, na década de 1990, que se faça, ao menos em pvc, uns informes memoriais, contanto que haja, visível,na casa onde Max Martins morou, registro de que ali, viveu, leu e escreveu seus livros. É tão pouco! Precisamos valorizar o que é nosso. Na década de 1980, pedi a mesma coisa se fizesse na casa onde morou o romancista Dalcidio Jurandir, em Cachoeira do Arari, no Marajó.
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