sexta-feira, 18 de setembro de 2015

ADALCINDA É A PATRONA DA FEIRA LITERÁRIA DO PARÁ – FliPA - Que acontece dias 17 e 18 na Livraria da Fox, em Batista Campos, Belém do Pará por iniciativa de escritores paraenses, da Editora EMPÍREO e pela FOX.

Adalcinda Magno Camarão Luxardo, nasceu em Muaná, é marajoara, é poeta, é a patrona da FLiPA/2015. Escritora paraense de muitas obras, entre os quais, Vidência, em 1941, ela diz: “Meu amor, eu te amo aqui sob a alucinação das estrelas do céu amazônico! Eu te amo neste silêncio de rio e de floresta...” Leia neste espaço, o texto que o poeta paraense Paes Loureiro escreveu sobre Adalcinda Camarão.

Adalcinda Camarão


Adalcinda: a que da poesia fez sua sina 

João de Jesus Paes Loureiro 

Na capa da Antologia Poética de Adalcinda* está o seu retrato como a brotar de um outro lado do eterno. Um rosto que, no centro fenestrado dessa capa, parece olhar na direção de um vago lugar onde seus poemas nasceram e continuam nascendo. 

O rosto é a parte nua do corpo que se mostra com naturalidade e inocência. É uma nudez revelada sem interditos. Salvo as raras exceções ditadas por crenças, tabus ou preconceitos. É a alma visível de cada pessoa. A expressão exterior e uma interioridade em busca do outro. De ser para além de si. 

O rosto de Adalcinda é a poética do corpo inteiro. O lugar de sua transcendência. Seu olhar contém esse próximo distante que costuma aureolar aquilo que é único e irrepetível. Emergência do sagrado contido nas encantarias de sua alma. A poética contempladora e contemplada de seu corpo. Seu olhar parece buscar esse além que as pálpebras não podem esconder. Espreita com distanciamento o que é próximo. Contempla no distante a proximidade. Assim como na palavra próxima do poema, buscava a significação distanciada na profundidade da poesia. 

O rosto de Adalcinda é como o rosto desvelado de sua poética. A vaga face visível do indizível. A face-palavra de sua poesia, no longo verso que foi sua vida. 


A poesia de Adalcinda, submersa em uma linguagem poemática ondeada de palavras, emerge de sua vida e pensamento, fluindo como um olho d’água jorrando para o tempo e a eternidade. Romântica visceral inserida no modernismo harmonizou gradualmente seus poemas desde a fecundidade telúrica paraense-amazônica, à suspensão de transcendência em sua obra. No entanto, mesmo tendo plantado na cultura da terra a sua inspiração romântica, não deixou de lado a inquietação existencial da poesia moderna. Morando no Brasil e nos Estados Unidos, visitando repetidamente Paris, Roma ou Lisboa, sua maneira de ver o mundo permaneceu a de eterna ribeirinha. Fez, portanto, uma jornada do “eu” inversa da que o Werter, de Goeth, fez. Werter sai de uma cidade grande para viver romanticamente seu amor distante em uma cidade pequena, em contato com a natureza, ouvindo ao fim da tarde o sino de uma igrejinha acalentando o anoitecer de uma saudade. Adalcinda saiu de cidade pequena comprometida com a natureza e vai sofrer os vazios do amor ausente em uma grande cidade e outro e distante país. Muitas vezes busca na fé e na transcendência a pacificação de suas inquietações e dúvidas. Adalcinda, como Werter, foi uma exilada do amor. 

A poesia, como toda arte, é maneira de fazer mundos. Adalcinda fez o mundo de sua poesia como os mundos que tinha dentro de si. Uma poesia que nasce de intensa necessidade interior que a legitima. Lirismo lapidado em fina sensibilidade. E profunda afirmação de sua liberdade de ser. 

A poesia é algo que nos satisfaz de um modo não executivo, não consumista, não coisificado. Trata-se de uma necessidade sem a determinação do necessário. Uma finalidade sem a representação de um fim, como legislou Kant. 

Penso que é conveniente distinguirmos poesia do sentimento poético. A poesia é uma forma simbólica do sentimento que se realiza por meio de palavras. Palavras carregadas de significação na materialidade do poema. E o poema é um signo auto-expressivo de som e sentido, búzio onde ecoam reminiscências, vozes, outros poemas, outras palavras, sentimentos vividos, vivências de leituras, cânticos ressoando lá da ilha de Circe ou de praias encantadas como Maiandeua. 

O poema, poesia em ato, resulta da fusão do sentimento poético (que é a poiesis própria do ser) com a técnica de produção de versos na linguagem (a poiesis do poeta) O sentimento, por si só, não faz poesia. A técnica, somente por si, também não a faz. O sentimento poético, que é uma potência do poema, pode ou não atualizar-se em poesia. Para desencantar o poema, há que o poeta ter a experiência específica desse labor. Há os que dizem que a poesia é inspiração. Outros, que é transpiração, isto é, trabalho e técnica. Todos eles absolutizam os extremos. Ou nunca fizeram poesia. 

Penso que a produção de um poema decorre da inspiração transpirante. Alma e músculo. Pena e máquina. Devaneio e calos na mão. E de uma poetizante necessidade interior. 


Adalcinda cria seus poemas de fino artesanato a partir de intensa necessidade interior. A forma não vem inconsequente de sentido. A arte é forma e sentido, regida por uma dialética reversiva. Forma carregada de significação, formadora de sentido. Adalcinda tem o impulso para vivenciar o ambiente que a seduz a fim de poder criar. Habitar de corpo e alma a fonte de sua criação para dela extrair originalidade. Uma originalidade que não se reduz à aparência e vem incorporada pela infinitização do sentido interior. Uma arte poética que produz emoção e pensamento, encanto e reflexão. Esta é a virtude revelada no processo de criação de Adalcinda, em sua obra. Sua poesia contém o sentimento místico da natureza, da realidade cotidiana, a evidência do instinto, a individualidade e a sensibilidade para o social. 

Seus versos se revelam pela imagem sensível, fecundada na essência da cultura paraense-amazônica intercorrente com a sua nativa sociedade humana, emoldurada pela natureza fluvio-florestal e filtrada por sua fascinante aparência. Pela aparência penetra-se na essência da paisagem amazônica: a visualidade plástica de rios e floresta, a etnodramaturgia cativante dos mitos, o incessante apelo ao olhar privilegiado como descobridor de submersas realidades. Na Amazônia retornamos às fontes do olhar. Às manhãs de origem do poético. A contemplação, portanto, deslumbra-se com a aparência estetizante e, através dela, torna-se um olhar revelador de mundos. Não é por acaso que seu primeiro livro tem como título “Vidências”. Esse mundo magnífico e original de sobrevivências da bela harmonia entre o homem e a natureza, um pouco antes de sua progressiva destruição do meio-ambiente que estigmatiza o Estado. Antecipa os principais temas que irão emergir ao longo de toda sua obra posterior. Está sempre diante do real. Faz dos assuntos simples do cotidiano um salto para o transcendente. Cativa do sentimento exuberante e dotada de intensa imaginação oscila entre a inquietação interior e a confiança na crença, insatisfação e aceitação, melancolia amorosa e celebração da vida com amor. 

Esse livro inaugural é como um olho d’água. Dele se formou o riomar de sua poesia, algumas vezes de proporção oceânica. Formulando uma obra na vertente moderna do início do modernismo a partir da cultura da terra e o meio ambiente, seus poemas são a delicada expressão simbólica dessa cultura. E fonte de sua originalidade. Uma originalidade irrigada por afluentes de outras literaturas, como a francesa, a alemã e a norte-americana. Soube fazer a justa relação de transacionalidade entre sua visão poética nativa e a extra local, sem dependência de uma sobre a outra. Mas a base é a de sua tradição cultural brasileira. Torna-se visível a motivação cristã de contido misticismo, que pode lembrar Augusto Frederico Schmidt e Paul Valery. 

É uma poesia contemplativo-reflexiva típica da cultura ribeirinha, que me é tão cara também. E que expressa a parte mais original de sua poesia que foi amadurecendo como forma e linguagem ao longo do tempo. E que expressa a parte mais inesperada de sua obra. As raízes submersas em sua alma. Mesmo quando passou a residir nos Estados Unidos, essas dimensões se mantiveram nos poemas de contenção maior, diante do fragmentário cotidiano americano. 

A visão ribeirinha do mundo, que me é tão cara, torna, muitas vezes, seus poemas em rituais de passagem, destacando-se as alegorias do “marinheiro”, da “correnteza do tempo”, das travessias do amor. Não tem ânimo para reter as circunstâncias. Tudo em sua poesia, talvez como nela mesma, é uma perda e uma fuga. Mas não trata os temas de forma impressionista. Provoca o leitor em sua busca de transcendência e duração simbólica. Seu olhar não se limita no visível: busca no visível o visivo, se lembrarmos de Merleau-Ponty. Persegue o significado que se esconde atrás das imagens. Foge do óbvio. Provoca na percepção do leitor a revelação do obtuso, que é o sentido da oculta e inesperada verdade simbólica, formulada por Umberto Eco. 

Além de contemplar reflexivamente a paisagem humana e natural, a poeta incorpora-se à natureza em suas razões de ser. Adalcinda-natureza. Natureza-Adalcinda. Celebração de uma identidade provocada pelo ritual poético. E já apresenta inquietações quanto aos seus destinos identificados. Confere à natureza as pulsações humanas da alma e sensibilidade diante da vida, das coisas, dos homens. Sem jamais recair no pieguismo ou tonalidade confessional, que poderiam turvar o límpido vitral de seus poemas. 

O amantíssimo filho Tom e o amado esposo, Líbero Luxardo, cineasta e fotógrafo, representam a fascinação de seu amor. Amor de mãe. Amor de fêmea. A partida para a América do Norte com o filho, em busca de educação e acompanhamento especial, que só lá poderia ser encontrado na época, agravada pela separação espacial de Líbero, provocou uma fissura em sua alma que nunca cicatrizou. Uma comovente demonstração de amor materno ao filho, capaz de quebrar as amarras do amor que a prendiam ao lado de seu amado esposo. Um amor que não se afogou nas lágrimas da distância e foi transfigurado em versos sabendo à amarga doçura da saudade. 

O amor é como forma de destino em sua poesia. Um destino hesitante entre a glória e o sofrimento, a celebração e a saudade, o canto e o pranto, a presença e a ausência. Mas sempre amor. Um amor aquecido em chamas da carne na fogueira do sentimento místico. Muitas vezes um amor que dobra os horizontes da solidão. Mas nunca convertido em brasa fria ou cinzas murchas. Amor na dependência soberana de sentir-se amada, dilacerada em sua necessidade de amar. 

Aos poucos, o amor se vai tornando a lenta dessublimação da carne, tornando-se tatuado de ausências. O que equivale à perda de si mesma. Enquanto que, a projeção do amor ao filho vai ocupando todos os espaços de suas razões de viver. 


Vitral de versos. Escolha aleatória. 

Escuta o canto noturno das águas que passam./Escuta./São as almas dos náufragos que choram./*/Aquela palmeira esguia, ferindo o céu./qual estranha bandeira esquecida./*/Aquela canoa, fazendo visagem,/na sua viagem não cansa, não cansa./Parece o barquinho da minha esperança./*/As nuvens sacodem chuva e tristeza/só porque eu quero luar nos meus pés./*/Depois que o momento passou,/fiquei quieta na tua alma,/qual gota de orvalho/dormindo na pétala de um lírio./Fiquei parada nos teus olhos,/qual vitória-régia/na doçura da onda/de um lago azul./*/Vai, noite. Bebe primeiro um pouco de luar/no fundo das palmas/macias do açaizeiro./*/ As garças regressam cansadas dos lagos./Os pássaros mansos gorjeiam baixinho./As nuvens se deitam rosadas e puras/e o céu adormece na mão das estrelas./*/Caminha a nódoa roxa da lua/como um estandarte da Procissão dos Passos./*/Deito-me sobre meus pensamentos/*/E as mãos ficaram sem búzios,/porque os búzios foram dar/sal de ausências à saudade/pra saudade não voltar./*/E some o barco da aurora/com o veleiro de estrelas do meu pranto./*/Fala, Líbero meu. Ninguém vai escutar./Tu sempre foste a voz. Eu, eco a te procurar./*/Daqui vejo as últimas velas/do barco do sol que afundou para oeste./Daqui vejo Deus me acenando/que o dia inda está muito incerto./*/Me abraça apertado que eu venho chegando/sem sol e sem lua, sem rima e sem mar,/coberta de neve, lavada de pranto/dos ventos que engolem cidades no ar./*/Cochilo saudades na noite abanando/teu leque de estrelas, Belém do Pará! 

Na longa temporada de Adalcinda em Washington, sua poesia foi absorvendo os temas do cotidiano da cidade grande, estranha, sem as raízes expostas como nos manguezais de sua terra marajoara, envelopada pela tecnologia do desenvolvimento contemporâneo. A vida fragmentada moderna, o desnorteio da fragmentação do homem, correlata à fragmentação da vida moderna. Humanismo fragmentado, a cultura moderna e transmoderna tem na fragmentação do corpo um de seus paradigmas. O detalhe reúne o todo fragmentado. O todo é um vitral de detalhes, de pedaços, de partes, de decomposições. Exemplos emblemáticos estão na fotografia e no cinema. O primeiro plano do rosto, o close, é uma forma simbólica decaptação. No mesmo sentido, as mãos, os pés, os olhos, as pernas, o sexo. As partes exibidas pelo cinema (ou na televisão, ou no celular, que se utilizam da linguagem cinematográfica), autenticam a importância do detalhe diante do todo. Tudo tão diverso da vastidão totalizadora, panorâmica que marca o trajeto antropológico de sua vida ribeirinha paraense-amazônica. 

Adalcinda, na progressiva convivência com a literatura norte-americana e o ambiente cosmopolita, foi introduzindo em sua poesia dispersão e fragmentação. A instabilidade se impõe como situação estável. O efêmero, como duração. O instantâneo como a surpresa a ser apreendida e transformada em permanência. Incorpora as imagens de uma civilização caleidoscópica e dispersa. A unidade cultural estilhaçada. Fragmentação do mundo, da cultura, do espírito moderno, da consciência, da tecnologia, da arte, da estética. Mas, o que dá unidade, grandeza, estrutura, originalidade à sua poesia dessa fase extra local, longe de sua terra, é o sentimento jorrando desde seu primeiro livro, quando a expressão simbólica e a compreensão do mundo nascidas no pertencimento ao lugar de origem, mantém-se a dominante de seu sistema poético. Ver e sentir o mundo amazonicamente num gesto universal para além de suas fronteiras. 

*Cejup. Belém, 1995 


____________________________________________________________ 

João de Jesus Paes Loureiro Doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne é poeta, professor de Estética na Comunicação, Filosofia do Teatro e Filosofia da Dança, na Universidade Federal do Pará. Além de obras de poesia, romance e teatro, há também ensaios no campo da arte e da cultura.

Nenhum comentário: