quarta-feira, 17 de abril de 2013

A ETERNA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO DIALÉTICO

Salomão Larêdo, escritor e jornalista

Filipe Larêdo

Filipe - dando continuidade aos seus comentários literários – nos brinda com o mais que competente comentário a respeito da obra clássica de Ivan Turguêniev de título “Pais e Filhos”. E diz: “ ... quando o li pela primeira vez, era adolescente...” e revela que retirou da “biblioteca da casa de meus pais”. Vale a pena ler todo o comentário completo no site papodehomem.com.br e o livro, aqui, agora, apenas uns excertos.

Filipe Larêdo é um amante dos livros e aprendeu a editá-los. Atualmente coordena o catálogo estrangeiro da Editora Novo Século (São Paulo – SP). É formado em Direito e em Produção Editorial.


Pais e filhos (Ottsy i Deti) | Livros pra macho #9

 em 13/04/2013 às 0:00 |

"Da belíssima biblioteca da casa de meus pais, retirei diversos livros que marcaram a minha vida. Muitos deles foram tão importantes para mim que tive de “surrupiá-los” e, hoje, embelezam a minha, que ainda é modesta. E para marcar a minha relação familiar,
Pais e filhos, de Ivan Turguêniev* (1818-1883), está entre eles.

Quando o li pela primeira vez, ainda era um adolescente, e minhas convicções políticas e filosóficas eram mais furiosas do que fundamentadas. Não que hoje elas estejam totalmente alicerçadas, uma vez que acredito na eterna construção do conhecimento dialético, mas, nessa época, passava pela típica fase da revolta contra tudo, inclusive contra minha própria família.
Ao usar o adjetivo “típica” para qualificar o substantivo “fase”, quero dizer que, na adolescência, muitas pessoas passam pelas mesmas experiências hormonais. Isso alimenta uma sensação de revolta incontrolável e faz com que pensemos ter sempre a razão nos nossos argumentos.

Tal comportamento – comum aos adolescentes, mas não exclusivamente deles –, quando bem explorado, traz frutos importantes para a formação do indivíduo e, muitas vezes, até mesmo para a coletividade. Dessa forma, a pessoa consegue canalizar uma fúria interna para assuntos que acredita serem essenciais para si mesmo e, quando chega à fase adulta, a sua personalidade será a soma de todas as decisões e posicionamentos que tomou até aquele instante.

Eu sei, estou me estendendo um pouco e, sobre o livro, que é bom, ainda não falei quase nada. Pois então, vamos começar.

Pais e filhos é um daqueles clássicos que trazem a marca cultural de uma região e de um contexto político, fazendo-nos entender o que se passava no momento da narrativa, além de fornecer ampla circulação a um termo bastante usado pela juventude da época: niilismo.

Esse romance, assim como outros da literatura russa, tais como os de Fiódor Dostoiévski e Maksim Górki, exerceu – e recebeu – profunda influência nos pensamentos do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, no que se refere à definição de um comportamento iconoclasta e contra tradições estabelecidas sem pragmatismo. Em outras palavras, o niilista (do latim nihil, nada) era uma pessoa revoltada contra o padrão político-social e desejava destruir a ordem aristocrática vigente.
A história começa com dois jovens, o médico racionalista Bazárov e seu seguidor e admirador Arkádi, chegando à casa do pai de Arkádi, Nikolai, no interior da Rússia. O pai, já viúvo, mora junto com o irmão, o aristocrata Pável. Ao serem recebidos, o carinho paterno é intenso, mas logo percebe que o contraste das ideias entre seu irmão e o amigo do filho vai gerar bem mais do que apenas discussões, já que os mais antigos viviam sob um modelo cada vez mais ultrapassado.
Para que os leitores possam entender esse modelo, é interessante fazer uma digressão histórica, de modo a visualizar como andavam as coisas em 1862, ano da publicação de Pais e filhos.

Naquele cenário, a Rússia passava por profundas transformações. O tsar Nicolau I buscava o fim da escravidão no país e considerava aboli-la. Porém, por medo de que os proprietários de terras se voltassem contra ele, preferiu não ir tão longe em seus propósitos, limitando-se a apenas melhorar as condições dos servos. Detalhe: diferentemente do que acontecia nos países americanos, onde os escravos eram negros africanos, na Rússia os escravos eram camponeses nativos da própria terra.
Velhos camponeses russos no final do século XIX

Predominantemente agrário, o modelo de governo russo era muito semelhante ao adotado durante o feudalismo, o que demonstrava o quão atrasado era aquele país, se comparado a outras nações, principalmente às do ocidente europeu. Como contestadores e reformistas, os jovens surgiram para reivindicar mudanças e, do outro lado, os pais, acostumados às tradições antigas, preferiam permanecer sob os costumes de uma Rússia parada no tempo.

Como uma verdadeira caricatura da juventude de sua época, Bazárov pode ser considerado o personagem principal do livro. Ele, como muitos outros jovens, desejava que o país se desvinculasse das tradições antigas e abraçasse o progresso do mundo civilizado. Para isso, era necessário que as autoridades fossem destruídas e o racionalismo, verdadeiramente adotado.

“– O que Bazárov é? – sorriu Arkádi.

 – Tio, o senhor quer que eu lhe diga?

 – Faça-me esse favor, meu sobrinho.

– É um niilista.

– Como? – perguntou Nikolai Petróvitch.
– Ele é um niilista – repetiu Arkádi.

– Niilista – disse Nikolai Petróvitch. – Vem do latim nihil, nada, até onde posso julgar; portanto essa palavra designa uma pessoa que… que não admite nada?

– Digamos: que não respeita nada – emendou Pável Petróvitch.

– Aquele que considera tudo de um ponto de vista crítico – observou Arkádi.

– E não é a mesma coisa? – indagou Pável Petróvitch.
– Não, não é. O niilista é uma pessoa que não admite nenhum princípio sem provas.”

(Trecho de Pais e Filhos)

Para todos, Bazárov parece ser seguro e inteligente. Em suas conversas, ele mostra o quanto acredita nos argumentos niilistas e afirma que está disposto a lutar até o fim por suas convicções. Porém, existem coisas que ninguém, nem mesmo o mais sensato dos homens, consegue entender: as coisas do coração.
Folha de rosto da segunda edição de Ottsy i Deti, o Pais e Filhos
Clique na imagem para ampliar

Bazárov se apaixona pela viúva Odíntsova e, quando isso acontece, não consegue ser tão racional. Embora saiba exatamente o que deve fazer, seus conflitos emocionais o traem e ele não entende porque não consegue ser correspondido. Esse é um ponto em que fica evidente que o niilista padrão nunca deixou de ser humano e, assim, é suscetível aos mesmos problemas de todos, embora o negue veementemente.

Turguêniev foi corajoso. Escrever sobre um tema no momento em que ele está ocorrendo é difícil. Mais difícil ainda é quando esse tema diz respeito às possibilidades de transformações tão grandes. Aí a dificuldade se torna risco, já que as transformações podem não ocorrer e, como normalmente acontece, os contestadores passam a ser perseguidos.

É por esse e outros motivos que admiro a obra e a figura histórica de Turguêniev. Ele, como poucos, soube identificar as características de sua cultura e as transportou para o texto, proporcionando-nos, com detalhes, a experiência que apenas a literatura de boa qualidade consegue reservar.

*Ivan Turguêniev (1818-1883), nasceu em Orel, região da atual Ucrânia. Foi amigo íntimo de Gustave Flaubert e de Liev Tolstói, com que tinha graves brigas. Quando morreu, já era tido com um dos grandes escritores russos e foi enterrado em São Petersburgo acompanhado por uma multidão de seguidores.
 



COMENTÁRIO

Caramba cara, muito bom o texto, e me deu uma vontade tremenda de ler o livro. Eu vivo um certo conflito, claro que nem se compara ao vivido pelo Bazárov, mas não deixa de ter a sua importância. Estudo Jornalismo em uma universidade "medíocre" onde a parte intelectual das coisas não é levada a sério, me esforço pra tentar entender a essência dos pensamentos e das ideias, por conta própria, pra me tornar um ser pensante. Mas mesmo com a minha pouca experiência de vida e tudo mais já deu pra perceber que isso não é tomado como importante pela maioria. Mas o que me conforta é saber que existe muita coisa pra me ajudar, e sei que a literatura é uma delas e gostaria muito de ter esse tipo de livro na estante dos meus pais para poder "surrupiá-lo" também. :)
Obrigado pela dica e também pelo ótimo texto. Abraço! Nilson BrazVer mais


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