sexta-feira, 13 de abril de 2012

O OURIVES QUE SE ESCONDE SOB A JOIA DO AFETO

Numa manhã  ensolarada  de junho – quase final do mês –  no  ( frutuoso, impagável, poético,  mágico e maravilhoso   recanto encantado  desta amada e enfeitiçadora morena chamada  Belém ) Ver-o-Peso - sob as águas do rio Guamá e  a brisa da baia do Guajará, com os sons das embarcações fluvioasfálticas  e humanas  da Ilha das Onças ao Boulevard  Castilhos França, da Oriental à Ocidental dos mercados e entornos  -, com minha mulher Maria Lygia, comprando essa delícia chamada castanha-do-pará pra levar ao nosso filho Filipe, em São Paulo,  um senhor ao passar por nós, perguntou:
- Você não é o Salomão Larêdo, o escritor, o jornalista? E que é de Cametá?
- Sou!
- Muito prazer em conhecer, me chamo Saveney e sou joalheiro, sabe? Aprecio seu trabalho de escritor e gosto  do  modo carinhoso como escreve sobre  Cametá e sua gente  e há muito queria  ter a honra de  conversar  pessoalmente  e agora que o vejo aqui, tão perto , me deu coragem de abordá-lo  porque  queria muito falar com você  pra que coloque nos seus escritos o nome de um cametaense, seu conterrâneo,  no meu entender, famoso e importante e que ninguém sabe quem foi. Trata-se de João Pimenta do Prado Dias, o maior mestre joalheiro que conheci.

 - Já ouviu falar?
Respondi que não e então Saveney, em pouco  tempo, me colocou a par da profissão de ourives que ele prefere denominar de joalheiro – dá mais prestígio,  confessa -  e relatou seu aprendizado e o prazer de ter conhecido grande nomes da profissão, sempre destacando o cametaense João Pimenta como um gênio criativo da ourivesaria que se praticou no Pará nas décadas de 1950/1960/1970.
O papo corria agradável sob a  rica moldura veropesiana,porém, precisava comprar outras iguarias pra levar ao Filipe e  às vésperas da viagem, muita providência a tomar e então acertei com Saveney o seguinte:
- Vou sair de férias e passar a primeira quinzena do mês de julho com Filipe e o restante, em Salinas. Na volta, prometo conversar com o senhor sobre este assunto que me interessa saber e escrever, afinal não é todo dia que se topa com um ourives, ou melhor, um joalheiro no Ver-o-Peso. Saveney, pra garantir o que eu prometia, anotou  meus contatos e claro, gravei o número do  seu celular e nos despedimos.
 Fui sonhando com  as  informações que poderia obter do futuro  entrevistado, referente a Belém, num determinado período , a respeito do conhecimento que ele possa ter de como, no Pará, se desenvolveu a ourivesaria , arte milenar  que passou pelos egípcios ,se afamou na França com  o premiado artesão Charles Guillaume Biennais e se destacou  no século 18 com  Dinglinger, joalheiro da corte, enfeitiçando  Caroline Murat, irmã de Napoleão  e rainha de Nápoles, aformoseou ainda mais madame  Pompadour,  princesa Grace Kelly ,  a moderna  Jacqueline Kennedy e tanta gente famosa e se popularizou em toda parte , inclusive em nosso meio e já planejava ouvir as contações de seu Saveney antes de ir a Salinas. Mas, meu pai, Milton Larêdo,  utilizando um “adágio popular” como ele gostava de argumentar em sua  dialética  para  instruir  os filhos sobre  a vida, neste mundo, conforme nossa crença católica,  dizia   que“ a gente propõe e Deus dispõe”.
 E no retorno de São Paulo tivemos a surpresa  de que o glaucoma já fizera seus estragos  na vista de Maria Lygia e então os planos mudaram. Depois da cirurgia, quase no final do  mês  de agosto, [1]Saveney esteve em nosso apartamento pra falar de  João Pimenta do Prado Dias seu mestre na arte da ourivesaria; e, claro, aproveitei pra saber  os acontecimentos  da vida  de  Saveney, também, que, discreto,  não queria aparecer, apenas sublinhar o nome do amigo João Pimenta  que foi seu mestre e continua seu ícone, merecendo, ao menos de seus conterrâneos, o  reconhecimento e a  visibilidade ,que, segundo Saveney, os artistas merecem.
O que conversamos, o leitor pode fruir no texto abaixo.
 A Passagem das Flores era onde o menino Saveney jogava bola com sua turma. Certo dia, de manhã, apreciava aquela partida uma pessoa que depois fez a seguinte abordagem:
- Olha, tu não queres trabalhar com joia?
O menino, mesmo sem saber do que se tratava, não vacilou e  respondeu, na bucha: quero! Mas fale com o meu pai.
E lá se  foi o garoto, aos  nove anos de idade, começar na profissão de ourives com  Julio Pascinio,  maranhense, casado com dona Maria Amoras Conceição, moradores, também da Passagem das Flores e que Saveney não conhecia porque nasceu em Benfica[2] - no dia 20 de agosto de 1943, filho de Pedro Nolasco  dos Santos (natural de Benfica) e  de  Luzia Oliveira dos Santos, que nascera em Icoaraci -, e lá permanecera  até completar sete anos de idade e depois junto com seus oito irmãos, a família então mudou-se pra Belém e veio morar  primeiramente na Passagem Boca do Acre e depois na Passagem das Flores.
O pai permitiu que Saveney Santos  fosse iniciar o aprendizado, desde que não faltasse às aulas no Grupo Escolar  Barão do Rio Branco, no bairro de Nazaré e assim o garoto  começou na oficina que ficava na rua Manoel Barata, anexo à Joalheria Central, de propriedade do alemão Paulo Muss.
Saveney que não sabia o que era anel, cordão, enfim, uma joia e disse, sem pestanejar, sim à profissão, agora se via mexendo com alicate e com as lamparinas que serviam de sopleto, uma espécie de maçarico que os ourives, através de um tubo, colocavam na boca e controlavam a solda que corria onde desejavam derreter e fixar o que o ourives queria. Saveney compreendeu a serventia das demais ferramentas: lima, cilindro, laminados e pegou habilidade com o portucho pra puxar o fio que rege a delicada obra de arte.


- O que faz quem começa?
- Primeira função é  aprender a soldar  cordão, anel...
Corria o ano de 1952/1953 e começou a moda das peças feitas com  pau d’angola que  seu  Antonio (Saveney não recorda o nome completo)  português (nascido na África, justamente em Angola), trouxe uma  mostra quando veio tentar a vida no Brasil e escolheu a cidade de Belém pra morar e depois, recebia muitas toras de trinta centímetros da madeira que  transformava em joias – figas, berloques – que toda mulher queria ter  pra usar e  Antonio fazia , além de  ser o fornecedor dessa matéria prima aos colegas. Seu Antonio gostava de fazer peças clássicas e Saveney já se inclinava para trabalhar  peças modernas, diferentes.
Mas, Julio Pascinio achou melhor ir pra Santarém e Saveney saiu da oficina e tratou de estudar para concluir o curso primário, com a idade de 12 anos e morando agora na Vila dos Bancários, mas sempre no bairro do Telégrafo.  Num dia, Saveney foi visitar sua irmã Norma e a vizinha, a dona Esmeralda, uma mulher bonita, comentou com Norma que seu irmão precisava de um garoto para ajuda-lo e “ o teu irmão, Norma, me parece no jeito e tem , me pareceu, todo o traço de quem vai gostar de aprender a arte da ourivesaria”. Norma riu e disse que o irmão já possuía iniciação na profissão e então, Saveney conheceu Edpolo Moscoso (a mãe se chamava dona Manoela, espanhola)  cuja oficina funcionava na travessa Primeiro de Março. Edpolo só trabalhava com pau d’angola.
- E o que você decidiu, Saveney?
- Fui. Era o destino - a profissão de ourives - batendo em minha porta, mais uma vez.
O atrativo na oficina do seu Moscoso, conta Saveney,  é que ele dava, aos sábados, aos aprendizes,  ajuda  financeira e isso era uma boa motivação.
Depois fui trabalhar na oficina do seu Pasquale Spinelli Novelino, homem alto, um metro e noventa centímetros,  que ficava na rua Manoel Barata, em frente à Fábrica Palmeira, a maior  oficina de joias. E essa se tornou então a minha maior faculdade, pois ali era a nata das joias, seu Pasquale era conhecedor de joias e fui um privilegiado,  ele me ensinou os segredos da oficina e da profissão. Nessa oficina conheci João Pimenta do Prado Dias, cametaense, que sabia tudo.
- Com quem ele aprendeu?
-  Seguramente com os ourives cametaenses, ele chegou aqui pronto,  artesão de mão-cheia, já sabia tudo do oficio, da profissão de ourives, era mestre e dos melhores que tivemos.
- Qual a idade dele?
-Em torno dos sessenta anos.
Era um mestre nessa arte e foi sempre um operário consciente de seu saber, mas, como bom artista, ficava nos bastidores, os outros brilhavam, ele era obscuro, quieto, não aparecia. Era uma espécie de cônsul de Cametá, pessoa cordata, amiga, eu sentava ao lado dele na oficina, era um grande fazedor de joias: cordão, pulseira,  bracelete,anel em ouro e platina e eu aprendi com ele, por isso afirmo que minha faculdade foi ali.
Saveney resolveu fazer o curso de contabilidade  estudando no colégio comercial Rui Barbosa, do professor Zacarias Paes que depois foi administrado por  Alberto Papaleo Paes e  em 1966 casou com Lindomar da Costa dos Santos.
Em 1970, trabalhou com Jaime José Pontes, na joalheria Sul-Americana  e com a responsabilidade de sustentar a mulher e os  três filhos, montou, em 1974, negócio próprio,  a “Oficina Ney”, nome sugerido pelo amigo Lamartine Koury de Souza, que ficava na  rua João Alfredo, 196, sala 11, centro comercial de Belém.
Após ter sido vítima de ladrões em sua oficina, Saveney mudou de endereço – que não revela – e continua trabalhando na profissão de ourives, que prefere chamar de joalheiro, atividade de onde sempre tirou seu sustento e de sua família, inobstante revelar que nunca gostou da profissão. Não fui eu quem escolheu, fui escolhido por ela.
- Trabalhando com joias, ficou rico, Saveney?
- Ourives não fica rico – responde - embora trabalhe com material e peças de valor: ouro, brilhantes, pedras preciosas, esmeraldas, rubis...
- E  joias, tem ?
- Fiz e dei algumas à minha mulher que foram vendidas quando  tivemos o infortúnio de ser vítimas de furto em nossa oficina , como relatei acima e passamos fase difícil e apertada, quase não consigo me levantar, porque levaram tudo, tudo.
- Na sua avaliação quais eram os maiores ourives de sua época?
Saveney responde: João Pimenta, os irmãos Miralha, Pascoal Novelino, Raimundo Rosa (conhecido como Duca), de Bragança, Antonio Venturieri (que era americano, descendente de italianos).Olhe, tivemos grande ourives.
- De onde provinha o ouro com que trabalhavam e quem garantia que a joia valia o quilate contratado?
- Bom, naquela época, todos os ourives compravam ouro na loja de seu Pedro Galvão[3] , a “Ouronorte”, que ficava ali na rua 13 de maio, seu Pedro era credenciado para proceder o negócio de compra e venda de ouro, era pessoa super-honesta, homem correto, íntegro, nunca se envolveu em negócio escuso, vendia ouro para os ourives e para a área odontológica. Esse seu Pedro, se fosse locutor, faria muito sucesso, tinha voz bonita e pronunciava bem as palavras, falava bem, boa dicção em português compassado.
-E a profissão, ainda tem futuro fazer joias?
-Enquanto houver mulher no mundo, haverá joias, elas gostam, mas é coisa cara, objeto em ouro é feito pra quem tem dinheiro, pois o valor é alto.
- O senhor desenhava joias?
- Não, não sou design.
- Como  se comportavam os ourives que o senhor citou?
- Todos presavam a profissão, andavam de palitó [terno]. João Pimenta era um home elegante. Na oficina, estava com sua roupa de trabalho, mas quando encerrava o expediente, ele envergava um palitó bem cortado, saía  à rua sempre  bem composto, elegante, dava gosto ver como todos se trajavam e  andavam. O cliente tratado com estima, respeito, cuidado. A João Alfredo, o comércio todo, era elegante nas décadas de 1950/1960/1970 ,não havia marreteiros, era igual Paris, muito chique.
- E hoje?
- Olha, me desculpe, mas parece um chiqueiro, sujo, sem elegância, sem glamour, acabou-se o centro comercial como espaço bonito de se ver, apreciar, andar, comprar.
-Ainda há bons ourives, hoje?
-Tivemos grande ourives em Belém. Tenho saudade deles que eram autênticos, corretos, você podia confiar no serviço, no trato, na peça, pois além da beleza, qualidade, havia a certeza na matéria prima utilizada.
-E o senhor?
-Continuo trabalhando, além de permanecer na profissão, também recupero peças em prata, como coroas e outros. Sou muito procurado por quem sabe o que é bom e quer segurança e confiança no serviço.


[1] 27 de agosto de 2011
[2] Município de Benevides – Pará
[3] Pai do publicitário, jornalista e escritor Pedro Galvão, dono da   conceituada agência “Galvão Publicidade”.

Um comentário:

Mariene disse...

Salomão Larêdo, lendo seu artigo busquei na memória, os elefantes, os trevos, as figas, em fim, os berloques cheirosos feitos de pau de angola.Saveney deve saber o porque delas terem desaparecido do mercado joalheiro a ponto de não se encontrar referência neste alfarrábio moderno que é o Google. Ele diz que enquanto houver mulher haverá jóias e se unindo à beleza da peça o perfume porque o desaparecimento delas? Gostei muito do texto, da simplicidade do ourives e de ter recordado parte de minha infância. Obrigada